A leitura
serena de ‘Tecido do Coração’
permitirá ao leitor crítico uma infinidade de inferências. A principal delas,
que aprecio, é a íntima relação de caráter existente entre a história de vida
da autora e a poesia que nos trouxe a lume. Aqui, a poesia é o sentimento que sobra ao coração e sai pela mão.
Com
essa obra poética Luísa Galvão Lessa Karlberg vai dar ao mundo - Tecido do
Coração - um singularíssimo livro de poemas, em um lugar onde a poesia
normalmente não passa da folha onde foi esboçada, nem seus autores ultrapassam
o limite da fronteira municipal. Essa poesia, eu creio, vai ganhar mundo,
povoar mentes e corações, semear lições a dizer que a vida é bela quando não se
tem medo dela. É como diz Fernando Pessoa: “Às vezes ouço passar o vento; e só
de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”, assim sente a autora.
Ainda, diz
um adágio que ‘o meio faz o homem’, mas neste caso, foi a inquietude
intelectual de uma jovem ribeirinha que triunfou sobre o seu meio hostil,
fazendo-a superar limitações, geográficas, financeiras e culturais, para urdir
uma vitoriosa história pessoal de vida, aqui expressa, em livro nascido do
cultivo humano à herança cultural da poesia.
Sendo
menina nascida às margens barrentas do Igarapé Humaitá, Seringal São Luís -
localizado às cabeceiras do Rio Muru, distante de Tarauacá oito dias de barco,
diria o vulgo tratar-se de mais uma história de personagem comum, sem sonhos ou
promessa de expressão. Mas, para o orgulho dos familiares, da sua localidade e
de uma plêiade de admiradores, com o mesmo esforço que um dia despendeu para
matar a fome alcançando os frutos no alto das árvores gigantes da Amazônia, o
poder da vontade de uma acreana idealista deu a Tarauacá, ao Brasil, e ao mundo
o que a localidade, a política ou governo algum pode “crear” - o caráter fértil
de uma das suas filhas mais veneráveis. Nascida à beira d’água, Luísa Galvão
Lessa Karlberg não quis pescar peixes, mas ler muitos livros, cruzar o mundo,
conquistar títulos. Assim, respeitada e realizada, intelectualmente, nossa
doutora é advogada e Professora Universitária; autora de incontável número de
publicações importantes que enriqueceram o mundo científico, acadêmico e a
Literatura local; possui doutorado em Língua Portuguesa pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro; pós-doutorado em Lexicologia e Lexicografia pela
Université de Montreal, Canadá; assento na Academia Brasileira de Filologia e
Academia Acreana de Letras.
Também, não
foi por acaso que recebeu convite estadunidense para integrar o quadro de
Membros da International Writers end Artists Association - IWA e ser Confreira
de Eduardo Galeano (Uruguai); Toni Morrison (Prêmio Nobel de Literatura - USA);
Fernando Henrique Cardoso (Presidente do Brasil, 1994 - 2002); Príncipe Dom
Duarte Nuno João Pio de Orleans e Bragança (Portugal) e mais uma infinidade de
Artistas consagrados, colecionadores de Arte e Escritores notáveis, espalhados
por mais de uma centena de países onde a IWA tem seu espectro. É fato que, por
aqui, jamais se imaginou que uma acreana pudesse ostentar a dignidade de
localizar o Acre no centro da Cultura mundial. Lessa é a primeira mulher da
Amazônia a nos orgulhar com a envergadura de tão alto diploma vitalício, que
lhe confere direito de indicar, votar e ser votada para os prêmios da Academia
Sueca - Nobel e Literatura e Prêmio Internacional de Ativista da Fundação
Gleitsman. O convite selado veio da parte da Condessa di Santa Sofia de
Heristal - a Senadora e Embaixadora at Large do Parlamento Mundial para
Assuntos de Segurança e Paz e Membro Perene do Conselho de Negócios da ONU, a
Presidente de Honra da IWA Terezinka Pereira.
De tempo em
tempo, na história da humanidade, chegam determinados momentos históricos em
que a “filosofia vigente” não consegue mais responder às indagações e
inquietações de uma determinada sociedade. Quando isso ocorre, a filosofia
superada é suplantada por uma “nova filosofia emergente”, que pode ser até
antagônica à filosofia dominante que lhe antecedeu. Estamos passando, agora, no
Brasil, por um momento destes, com sintomas manifestos de desorientação moral,
desmoralização institucional, confusão intelectual, oportunismo financeiro e
apatia cultural que se estende da beira-mar à Amazônia - local onde as tabocas,
os cipós e os galhos secos impedem a visão das árvores.
É
justamente nesta “hora sexta” que vem a lume ‘Tecido do Coração’, criação literária genuína, colhida na
experiência de uma vida dedicada à educação de gerações. Sabedoria humana adquirida
nos livros e no nobre ofício de Professora - uma voz ligada ao povo, sem os
rigores dos que manejam o estilo. No conteúdo extemporâneo e universal da obra,
a autora manifesta a intenção
poética de oportunizar a serena reflexão a respeito dos temas existenciais
humanos, como o amor, a morte, a felicidade, a tristeza, o lamento e as
consequências das contradições humanas, traduzidas pelo:
“... martelo de Deus a
[nos] bater nos dedos...” (p. 23).
Tratar-se
de uma publicação necessária à realização pessoal da autora que materializa sua
verve poética na criação livre, elegendo o amor como abordagem temática
principal. E cumpre este mister declinando das
ferramentas e recursos comuns à poesia, a exemplo da rima obrigatória e
do metro. Com liberdade, competência e apurado senso estético, elege, em
segundo plano, a prosa poética - estilo literário que apareceu como tendência
marcante nas publicações acreanas a partir da última década - como digna de
também figurar no seu livro de poemas:
“... Eu não quero roer caroços, eles estragam os dentes. Prefiro a
polpa doce e macia das atas e frutas de conde. Essas são as minhas preferidas.
Eu já não tenho paciência para lidar com mediocridades. Tornei-me uma pessoa
exigente. Não quero estar em lugares onde desfilam vaidades. Eu prefiro as
pessoas simples, inteligentes, que têm assunto e tutano na cabeça. Aborrece-me
pessoas invejosas que tentam destruir quem elas admiram, cobiçando seus feitos,
talento e sabedoria. Eu não suporto conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias, sobre as quais eu nem quero saber. [...]
Embora seja uma mulher das Letras, já não tenho tempo para debater
vírgulas...”. (Quando Já Se Viveu 60 Anos, p. 99).
A persona
do amor, mulher que nunca é neutra, também figura na manifestação de
personagens multifacetários - inclusive em Francês - que registram seus dramas
(e tragédias) nas histórias de “doçura do mel”... ou desiludidas... São rostos
desnudos de amantes que, em representação literária, sob o céu amazônico, expressam
o anseio humano comum de encontrar o: “Amor Maior do Mundo”, “Amor Invisível”,
“Amor Antigo” “Amor Atrevido” e outras infinitas formas de amor (ou de amar?)
consoantes no livro.
O poema que praticamente abre o livro é “Bênção do Amor”. Um
poemeto escrito em oito versos, sendo o “verso de prata” uma “redondilha
maior”, o texto foi concebido para dar ao leitor o máximo de poesia em um
mínimo de palavras: “...Refúgio das horas tristes, acolhe-me./Dá-me a bênção da
poesia inatingível/E por isso, talvez a mais preciosa”. (p. 15). O que mais me chamou à atenção em “Bênção”
foi a simplicidade invocatória e
impressão de facilidade com que foi produzido, além da semelhança ocasional que
guarda com os famosos versos de Goethe: “Oh Musas inefáveis,/ Oh formidável
engenho Divino,/ Inspirai-me para que meu estilo/ Não desdiga da natureza do
assunto.”
Do conjunto
da obra, vou destacar aqui um recorte do poema monostrófico “Quem eu sou”, como
mostra do vocabulário apurado e fluência de expressão da autora e, especialmente,
pela demonstração de incrível capacidade de definição de um ser humano por si
mesmo: “Eu sou a brisa que abranda os arredores,/ Eu sou a dança de salão
elegante,/ Eu sou a cor que colore a vida [...] Eu sou a história minha,/ Eu
sou pura como a flor,/ Eu sou doce como mel,/ Eu sou um pote de água,/ Eu sou
nascente rumo ao poente” (p. 108).
Mais
adiante, em “Você é assim”, diz: “Você é os brinquedos que brincou, As palavras
que usou, O segredos que guardou, A criança que Deus criou”. Em ” AVESSOS DA VIDA” (p.111), percebe-se a
determinação que move a sua poesia, o olhar sobre a vida, a maturidade, a
grandeza humana, a serenidade da mulher corajosa, sem medo de usar palavras, em
sentidos e figurações exatas na dimensão da vida: “Na vida já provei muitos
dissabores, De risos zombadores,inveja, depreciação,Sobre as opiniões que tenho
comigo”. Depois, em “Destino” (p.113), assegura: “O nosso corpo abriga uma alma, que é joia preciosa. Essa alma tem
forças para vencer adversidades, que são como nuvens. Para vencê-las é
suficiente manter a visão fixa no sol, seguir firme no ideal de sonhos,
projetos e perspectivas”.
Percebem-se,
nas poesias, que as palavras não são traduções de um sentido mudo, mas criação
aguçada de múltiplos sentidos. Aqui, a
linguagem não veste ideias, ao contrário, encarna significações,
estabelece a significação entre a poesia e o mundo, sedimentando os
significados que constituem uma cultura de sentir, pulsar, viver. A linguagem
não é mais a seiva das significações, mas o próprio ato de significar, assim, a
escritora, igualmente o ser falante, não pode governá-la voluntariamente, pois
ela se faz sentir, vibrar, dizer, traduzir, significar, reinterpretar, contar,
poetar, ao escrever: “Eu posso ser... A tinta da aquarela, A moça da janela,
Que olha a passarela (EU POSSO SER A MOÇA DA JANELA, p. 114).
Por isso
tudo, a obra literária não é um sistema fechado, ou seja, acabado e
equilibradamente estruturado. Acredita-se que toda obra literária pode ser
interpretada de diferentes maneiras, sem que isso comprometa a sua configuração
original. Cada vez que o leitor toma contato com um poema, neste “Tecido do
Coração”, acaba por reinventá-lo, na medida em que o reinterpreta segundo as
suas representações psíquicas.
Aqui,
igualmente Neruda, a autora apresenta a sua visão do mundo e da vida. Canta o
amor, a esperança, a dor, o sofrimento, a justiça. Fala do rio, do luar, da
noite, da chuva, do sol, das estrelas, como bálsamos e respostas para corações
feridos. Privilegia, por outro lado, os contatos humanos,quando diz em “Meu
Feitio”(p.116): Eu sou mulher campesina, da beira do rio, Faço da vida um poema
macio, Pleno de tesouros e encantos, Que
escondem imensos acalantos”. Acredita não haver poesia sem o coração palpitar
e destaca, ainda, que a sociedade humana
e seu destino são matéria sagrada e obrigação original para o poeta, quando
fala do “Tempo na vida da gente” (p.119): Eu vejo o tempo passar ligeiro.
Quando me apercebo já foi o ontem, estou no amanhã que se finda. Daí vem a
pergunta: quanto tempo a gente perde nesta vida com bobagens e detalhes
existenciais. Se fossemos somar os minutos jogados fora, notaríamos que
perdemos anos inteiros”.
Vê-se, então, que as palavras não são traduções
de um sentido mudo, elas são a criação de muitos sentidos. A linguagem de
‘Tecido do Coração’ não veste ideias, ao contrário, encarna significações,
estabelece a significação entre o eu e o mundo, sedimentando os significados
que constituem uma cultura, uma vida, um amor, uma saudade, um sentimento humano
singelo. A linguagem não é mais a seiva das significações, mas o próprio ato de
significar, assim, a escritora, tal qual um ser falante, não pode governá-la
voluntariamente, deixa vazar a emoção “Caminhei pelo mundo,
Andei, naveguei, mergulhei, Mais tarde aqui despertei, Não sei, não lembro
aonde cheguei… Só sei que caminhei à procura De alguém, um lugar seguro, Um
coração valente, maduro… (Caminhante da Vida, p.31).
Admiro,
sinceramente, a autora quando ela escreve prosa ou poesia, assim como textos acadêmicos,
pois sou um apreciador contumaz da sua prosa nos Jornais. Já cheguei a declarar que a admiro
literariamente, até a inveja, pelo realismo que empresta aos seus textos de
criação original e pela competência de sua expressão linguística. Os mais achegados
à Professora sabem da destreza com que desenvolve seus temas, sempre voltados
ao ideal de fazer chegar a Justiça até aos mais humildes.
Ademais,
Luísa Galvão Lessa Karlberg é uma boa amiga, boa filha e cidadã simples. Somos
confrades e compartilhamos diversos sonhos. Deve ser por isso que me elegeu,
imerecidamente, para degustar o primeiro cálix do vinho poético do sucesso do
seu livro de poesias. Poesia/Pedra capaz de nos humanizar por fricção para nos
tornar melhores a cada dia, além de produzir um efeito analgésico sobre a
rebocadura das circunstâncias alucinantes da vida moderna: na pressa do
trânsito que atrasa à chegada ao trabalho - porque a poesia serve de
impenetrável escudo psicológico ao autor, seus leitores e demais sofredores
inveterados... conforme registrou Graciliano Ramos em “comentários” a respeito
de Memórias do Cárcere: “Se não fosse
minha relação com os livros, na prisão, a exemplo de muitos companheiros meus,
teria enlouquecido”.
E, esta
particular insanidade é reforçada pelo dito popular, por nossas palavras:
“poeta e louco são nomes sinônimos”. O motivo, quem se atreveria a revelar sem
vestir o uniforme de iconoclasta? Parece óbvio. Todo poeta experimentado que
ainda escreve, nesta “Pátria das Chuteiras”, só pode haver enlouquecido, para
produzir um produto que ninguém quer comprar, aqui, como alhures - o Brasil
provinciano não sabe ler! Esta
pertinente queixa poética é antiga. Foi estampada por Mário de Andrade no
desvairismo provinciano de Paulicéia Desvairada (primeiro livro modernista
publicado no Brasil): cujas entrelinhas afirmam que são Paulo era (continuará
sendo?) entorpecente...
Espera-se
que o leitor reconheça e encontre neste livro as mensagens que ele transporta.
E que estas lhe provoque uma insuportável vontade de voar. Espera-se, também,
que este ‘Tecido do Coração’ tenha a mesma sorte da Paulicéia, por prestar-se
ao mesmo propósito instigador, à reflexão, resistência e mudança, neste caso,
no nosso ambiente amazônico, padrasto dos poetas que testemunham impotentes os
trabalhadores locais serem ameaçados nas suas conquistas históricas de luta. Um
palco de conflito travado no calor de quarenta graus, “fritando” o povo.
Que mais
dizer senão advertir que este tomo vai escrito no idioma do amor - única força
construtora. Que Ele, por seu mérito, renove nossa admiração pela autora,
acadêmica que merece o cúmulo dos nossos encômios. E que a capacidade
nobiliárquica da poesia sustente nossa esperança no porvir. Isso porque ao escrever o ser humano se inscreve na matéria,
imortalizando o seu pensar e o seu sentir. Escrever é, nesse sentido, um ato de
imortalidade ao que a pessoa foi ontem,
será amanhã e é hoje. Ao escrever o seu hoje, que amanhã será passado, o
poeta continuará presente. Por esse motivo, o domínio da escrita torna-se
importante não somente quanto ao aspecto social ou profissional, mas
principalmente quanto ao aspecto existencial.
Fait un bon
voyage, ‘Tecido do Coração’!
Renã Leite
Pontes
*
Professor, escritor, poeta. Membro da Academia Acreana de Letras e Presidente
da Academia dos Poetas do Acre.